sábado, 20 de dezembro de 2008

A mãe de todas as apresentações

Lehgau-Z Qarvalho

Estamos em 9 de
dezembro de 1968, um cientista de 43 anos chamado Douglas Engelbart, suando e esfregando as mãos, apresenta ao mundo, de uma só tacada, duas grandes novidades, duas enormes revoluções.

A apresentação, apelidada de “A mãe de todas as apresentações”, é realizada na Universidade de
Stanford para uma platéia de engenheiros da computação em completo salivar em queixos arriados até o assento de suas confortáveis cadeiras. O dia talvez esteja nublado ou com chuvas esparsas ou em meio a um gigantesco temporal ou ao sol a pino. Quem se importa?! Com um monitor ligado em rede a um computador no outro lado da cidade, Engelbart, o revolucionário, segue em seu intento revelador ajudado pelos amigos eletrônicos contados às dezenas no mundo todo, em uma época em que vários monitores já podem ser ligados a um só computador, mil vezes menos poderoso do que o longínquo iPhone.

Dotado de um rádio transmissor, enquanto apresenta as possibilidades de uma suposta rede em gestação, o cientista conversa com sua equipe, no laboratório, que a tudo acompanha. Mary Jane escreve em seu caderno escolar poesias pueris, pensando em seu namorado sardento de cabelos vermelhos e camisa xadrez. Minha mãe prepara mais uma papinha para, em seguida, “fazer
aviãozinho” em direção a minha boca. O gato da vizinha espera ansioso pela refeição que nunca chega, até que aquele delicioso animal de rabo pelado mete a cabeça para fora da toca. E Engelbart, em um momento sublime, se resolve em mágica: faz aparecer uma janela no monitor e lá está o rosto, em movimento, de um de seus engenheiros. Eles começam a conversar. A platéia está em êxtase. O padeiro dá uma parada para o descanso, e pragueja contra a vida árdua nos fundos de uma padaria. O trabalho apresentado não fora organizado de uma hora para outra, é claro; Engelbart e sua equipe de Stanford pesquisam, com verbas da NASA e do Pentágono, desde 1963. A tia May está apreensiva em sua primeira aula de datilografia e Otham não tem notícias do filho há sete anos.


Alguns meses depois a NASA transmitiria, ao vivo, para o mundo, a chegada do homem à lua. A tecnologia de digitalização de imagem utilizada na transmissão que espantaria e emocionaria viventes de todas as tribos e vertentes, seria aproveitada dali; do inspirado momento; das mãos, cérebro e coração de
Engelbart e sua equipe.

Bem como o meio que utilizo-me agora, 40 anos depois, para partilhar essa história, em rede, com quem eu quiser e em qualquer parte do mundo, esboçado, sim, naquela ocasião. E guiando-me, por óbvio, na tela do meu computador pessoal, pelo simpático amigo em formato de
camundongo, apresentado como a outra grandiosa revelação daquele especialíssimo 9 de dezembro da 1968, através de uma caixinha de madeira com apenas um botão.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Instruções para a aquisição dos meus originais

Enviar pelo correio uma proposta impressa do contrato para o Apartamento Escritorial (ver endereço completo mais tarde). Em hipótese alguma remeter o exemplar original do contrato, contendo propostas indecentes como cinco, oito ou dez porcento do preço de capa, como participação de quem pariu, labutou, criou e amou a obra (sobre o autor ter de pagar parte ou todo o processo editorial, então, nem ousar pensar). Propostas de cunho infanto-juvenis como ficar com todo o lucro do livro, alimentando a idéia de que o autor poderá ficar rico e famoso mais tarde, e deverá seus louros única e exclusivamente ao processo editorial e ao sistema de distribuição da editora, também devem ser desviadas na forma de cópia reciclável de antemão (ou seja, antes de nascer), pois qualquer material dessa ordem não será recebido e, ainda (se “por acaso chegar”), sofrerá com a possibilidade de ser revolvido e regurgitado após a catarse (não queiram por favor experimentar como se dá o processo). Preferencialmente, as propostas ou projetos deverão ser remetidos em encadernação espiralada, revestidas de idoneidade e com total deferência e respeito ao autor.

Propostas, contratos e projetos em versão eletrônica (CDs, disquetes, e-mail ou endereços de sites ou blogs) também serão avaliados (afinal estamos no século XXI e o desperdício de tempo, dinheiro e papel já constitui-se de crime, no mínimo, ético). O escritor se reserva o direito de não confirmar o recebimento de propostas, seja por telefone, fax ou e-mail (embora faça isso por pura civilidade e consideração pelo tipo humano em geral).

Dado o grande número de propostas que podem chegar, caso queiram, os(as) senhores(as) editores(as) confirmar o recebimento, utilizem o serviço de carta registrada dos Correios, endereçada ao "Apartamento Do Escritor Que Rala, Labuta, Chora, Ri, Pensa, Reflete, Pesquisa, Analiza, Vive, Come, Bebe, Dorme, Sonha, Se Profissionaliza e Faz História Para Que Os Caro(as) Senhores(as) Editores(as) Possam Rir, Pensar, Pesquisar, Analizar, Viver, Comer, Beber, Dormir, Sonhar, Se Profissionalizar e Fazer História, Além De Sustentar Seus Vícios, Medos, Prática De Esportes, Lazer, Moradia, Planos De Saúde Para Si E Para Os Seus".

O escritor não conta com colaboradores para avaliar suas propostas e projetos. Se houver interesse em ser publicado, entrarei em contato no prazo de seis meses a trinta anos. As propostas não aceitas serão remetidas a empresas de reciclagem de papel e/ou de idéias e padrões de urbanidade. Por favor, se tiverem alguma dúvida, telefonem ou enviem mensagens sobre o envio de suas propostas, pois elas serão respondidas com o maior prazer.


Atenciosamente, o escritor (ou a matéria-prima com que trabalham as editoras).



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O texto acima foi produzido em cima do texto a seguir, retirado do site da editora COSAC NAIFY:

Instruções para o envio de originais



Enviar pelo correio uma cópia impressa da obra para o Departamento Editorial (ver endereço completo abaixo). Em hipótese alguma remeter o exemplar original. Ilustrações para obras infanto-juvenis também devem ser enviadas na forma de cópia, pois qualquer material recebido não será devolvido após a análise. Preferencialmente, as obras ou projetos deverão ser remetidos em encadernação espiralada.

Livros e projetos em versão eletrônica (CDs, disquetes, e-mail ou endereços de sites) não serão avaliados. A editora se reserva o direito de não confirmar o recebimento de originais, seja por telefone, fax ou e-mail.

Dado o grande número de originais que nos chegam, caso queira confirmar o recebimento utilize o serviço de carta registrada dos Correios, endereçada ao "Departamento Editorial".

A editora conta com colaboradores para avaliar originais. Se houver interesse em publicar a obra, entraremos em contato no prazo de seis meses.

Os originais não aceitos serão remetidos a empresas de reciclagem de papel. Por favor, não telefone ou envie mensagens sobre o envio de sua obra, pois elas não serão respondidas.

Os originais devem ser remetidos para:

COSAC NAIFY
Departamento Editorial
Rua General Jardim, 770 - 2.o andar
São Paulo - SP
01223-010


Fonte: http://www.cosacnaify.com.br/originais.asp?language=pt

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Com seqüências

Lehgau-Z Qarvalho
Bem, os tempos se vão. O ano começa e se esvai com cirúrgica precisão. Teríamos orgulho de nós se admitíssemos mais nossas contradições, e conversássemos com nossa intuição. Mas estamos no mar, em meio à imensidão.

Sim, os tempos se perdem. Despem-se, se acham, se permitem os corações. Mas os tempos imperam. E as linhas tênues esfacelam-se por completo. Entre o não ter chão e a falta de teto.

Os tempos oprimem. Reprimem e desopilam. Desalojam. E as decisões? Sejam elas montanhas ou gotas de asfalto, o tempo aproxima, o tempo separa, o tempo é ritmo e domina: é meio tenor; meio-soprano; meio contralto.

Das oferendas algo sempre se tira.

Mas de um ano para outro, a sensação que se tem é de um estar eterno em frente à mira.

Seis tempos depois, bem lá no meio, vira-se morfina.

E o igual tempo a seguir, quando outra vez nos damos por nós, encontramo-nos de novo a vagar, flutuando no mesmo imenso mar.

E o tempo: resina.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Resoluções de ano novo, vida nova

Lehgau-Z Qarvalho

E esquiavam sobre gelo fino. A salvação estava na velocidade, pensava. Quando a qualidade nos trai, tendemos a buscar a desforra na quantidade. Sim, era isso mesmo, certificava-se a cada volta em cima do lago. Dava-se conta, a cada manobra, que, na própria essência, o desejo era um impulso de aniquilamento. Algo autodestruía-se sob seus pés, a cada manobra. Sim, de olhos fechados, dando voltas sobre o mesmo ponto, os braços bem abertos, pensava: ele, o desejo, é contaminado, desde o seu nascimento, pela vontade de morrer. Esse é o seu fim. Para isso nasce; para isso existe; mas disso, nem ele sabe.

Já o amor, por sua vez, é a vontade de atentar; de preservar o ser/sentimento cuidado. Agora ia ziguezagueando. A face corada pelo vento frio das tristes premonições. Custara a querer enxergar, mas não mais podia livrar-se de algo já tão claro. Tão transparente. Tão diante de si. Sim, o amor: um impulso que se move ou faz mover em direção oposta ao eixo de rotação, ao contrário do axípeto desejo. Um impulso de expandir-se; ir além; alcançar o que está lá fora. Comer, ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto, e não vice-versa. E não tal qual o desejo. Sim, arrepiou-se, o contato com outras paragens, outros ares, outros calores, outros frios, outros fluidos, outras moléculas, nos faz menos nós; mais todo mundo.

Quando a lágrima chegou ao chão, estraçalhou-se feito vidro fino.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

o ano do rato contemplativo


pão velho, bolachas moles, balas derretidas
tenho vergonha de dar
tenho culpa de jogar fora
eu tenho vergonha de tudo
até do que não me faz
meninas sem peito até mostram as tetas
meninas sem peito até mostram as sobras
meninas sem peito
no ano do rato contemplativo
não usarão saltos
só estreitos.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Mutações






















Lehgau-Z Qarvalho

E enquanto almoça, solitário, salmão com alho-poró ao óleo de oliva e arroz selvagem (uma de suas especialidades, e das que mais gosta), e percebe lágrimas sonoras em mp3, sente-se feliz sem saber bem por quê. Ou melhor, sabe que é por causa dela, mas há algo diferente, agora. Pode-se acrescentar um pouco de molho shoyu ao salmão. De repente, dá-se conta do que é: sente-se feliz por ter aprendido a entender e a respeitar o tempo dela. O seu Modus Operandi. E, como conseqüência, se tornado, ele, menos aflito. Há quem prefira o salmão em filés, eu o prefiro em postas. E descobre que tudo isso que os atinge, há meses, pode ser muito mais profundo do que sequer pudera acreditar. É possível acrescentar folhas de hortelã para dar vida, cor e frescor ao prato. Descobre que o que está a lhe acontecer é o fim da paixão. Um bom acompanhamento é o vinho tinto; Malbec argentina da região de Mendoza, para ser exato. E, quando a paixão termina, duas coisas podem acontecer. Mas, para um almoço em um dia claro e límpido de primavera, quase verão, um branco jovem também vai bem. Uma: a indiferença ou, em outros termos, o fim de tudo. Sugeriria um Carta Magna, produzido no Chile, safra 2006, bem gelado. Outra: o nascimento do amor.